Nero entrevistado por revista internacional de cultura árabe
- Outro
- 5 de mai.
- 11 min de leitura
Atualizado: 16 de jul.

A revista internacional de cultura árabe 'Medieval Magazine', dirigida pela arabista libanesa Natalie Mallat, acaba de publicar uma entrevista ao poeta português Nero, a respeito do seu novo livro Akbar — Lunário Poético duma Alma ainda Árabe.
Traduz-se para português, abaixo, essa mesma entrevista.

O novo livro de Nero, Akbar – Lunário Poético duma Alma ainda Árabe, inspira-se no legado árabe pela Península Ibérica e já está disponível nas livrarias portuguesas e on-line. É a prova de que a memória da presença árabe perdura em Portugal.
Nero – um dos poetas portugueses mais interessantes e surpreendentes da atualidade – divide o livro em quatro partes: busca pela origem e pelo crescimento da fé islâmica, de forma simbólica e mística, em lua crescente; celebra, com fervor popular, a expansão árabe pela Península Ibérica, em lua cheia; recupera o tom épico, recriando episódios históricos da queda, em lua crescente; propõe, em quiasmo, o diálogo e o silêncio como instrumentos essenciais ao perdão, à convivência e à tolerância, de que se farão as luas novas de qualquer idade.
Espécie de almanaque espiritual, Akbar alinha ainda o corpo baço das suas páginas com o fulgor das suas constelações poéticas, refletindo influências do sufismo, em quatro interstícios que precedem ou sucedem cada lunação: "abluções", "noites sibilantes", "jejuns" e "meditações". Outro, nuclear e fiel ao palíndromo do título, "ovo", é acompanhado por uma bela ilustração, de inspiração árabe, assinada pelo artista geresiano Miguel de Sousa.
De arquitetura tesselante, de padrões, simetrias, detalhes e leituras potencialmente inesgotáveis, Akbar é o segundo volume da anunciada “Trilogia do Espírito”, a trilogia informal que começou com Telúria (2023), e o terceiro livro de Nero – a sua trajetória na literatura começou com o ambicioso e fantástico épico Oceano – O Reino das Águas (2021). Dedicado “à luz e às sombras da cidade de Silves” (uma das capitais do Al Andalus, de onde Nero é natural), convergem neste livro tradição e modernidade; nelas, a interioridade de cada um e o infinito que gravitará apenas entre a memória e as estrelas — onde se resolverá quaisquer questões religiosas ou culturais.

Recentemente, tive a oportunidade de conversar com Nero sobre o seu livro:
Natalie: Nero, bem-vindo de volta ao meu blogue. Falou-se sucintamente sobre o seu recém-publicado livro na edição de dezembro da revista Medieval Magazine (nº 6). Ele é inspirado no legado árabe pela Península Ibérica, que começou em 711 d.C., sob o Califado Omíada. O que o motivou a escrever este livro?
Nero: Como poderá imaginar, crescer no Algarve ainda significa crescer rodeado pela herança árabe. Não estou a falar apenas da essência genética, provável, daqueles que aqui nasceram. Estou a falar do contacto com pedras, vestígios e monumentos, histórias, instrumentos e técnicas, costumes, folclore. Estou a falar da toponímia, dos milhares de palavras em português de origem árabe. Estou a falar da poesia luso-árabe, do pensamento e da influência do sufismo na literatura portuguesa em particular. Estou a falar de tradições e memórias e do culto que se criou a este respeito, geração após geração. Desde que estudei em Silves, na adolescência (mais ou menos enquanto começava a escrever o meu primeiro livro, o poema épico Oceano — O Reino das Águas), que me imaginei a escrever um livro sobre a presença árabe. Bem... esse foi o ponto de partida. E, depois, tentar descobrir que parte da minha alma ainda tem influência árabe. Pensei em coisas nas quais nunca havia pensado antes: por exemplo, a maneira como concebo a arquitetura de cada livro... a minha obsessão por simetrias e espelhos encontra um eco claro na arquitetura árabe.

Natalie: Qual é a história por detrás do título "Akbar"?
Nero: Todos os meus livros até hoje destacam-se por terem uma única palavra como título. Soube desde o início que este terceiro livro seguiria a mesma lógica. Queria que fosse uma palavra árabe, com um som marcante e claramente árabe, exótico e misterioso para qualquer leitor português comum. O facto de a palavra escolhida não existir na minha língua materna realçou a necessidade de adicionar um subtítulo mais esclarecedor. A primeira palavra que me veio à cabeça foi “Azahar”, pensando que escreveria um livro sobre o destino. No entanto, naquela época, no último semestre de 2020, por coincidência e sem o meu conhecimento, era publicado um livro de um poeta vizinho justamente com esse título. Então, procurei por outra palavra que tivesse um som semelhante. “Alqamar” foi uma possibilidade (e foi dela que surgiu a ideia de criar uma espécie de calendário lunar), mas depois rendi-me à palavra “Akbar”, uma palavra sagrada em muitos contextos, particularmente aqueles associados ao islamismo. A própria palavra, portanto, acabou por me atrair para a ideia de Deus, para o desejo de pesquisar pelas origens do islamismo. Surgiu então a ideia de estudar a expansão árabe, a sua presença pela Península Ibérica, o choque cultural, a coexistência do eu e do outro. Combinei isso com a meditação sobre tradição, religião e espiritualidade. Construí pontes com o presente, estabeleci diálogos e silêncios.
Natalie: Como correu o lançamento?
Nero: O lançamento do livro teve lugar em Silves, no Café Inglês, diante das muralhas do castelo árabe, ex-libris da cidade. Foi um evento extraordinário. Afinal, vários séculos nos separam da época em que, no Al Andalus, Silves se consolidou como capital da poesia e da filosofia. Hoje, porém, é a capital das laranjas; o que não é alheio à presença árabe. A poesia não é muito conhecida por aqui. Apesar disso, o Café Inglês encheu para o lançamento do livro. As professoras Esmeralda Lopes Alves e Irene Ferreira, especialistas em Língua e Literatura Portuguesas, apresentaram o livro, juntamente com Nuno Campos Inácio, que nos falou sobre cultura e nos levou numa viagem no tempo através das impressionantes ilustrações de Vítor Borges, que procuram recriar a Silves islâmica na sua época áurea. Dezenas de pessoas compraram o livro em primeira mão, fazendo questão de estar presentes. Foi destaque na imprensa local. Guardarei para sempre boas recordações desse dia.
Natalie: Consegue falar-nos mais do livro e do seu conteúdo?
Nero: O livro tem uma estrutura espelhada. Tem um poema central, ilustrado por Miguel de Sousa, intitulado “ovo”, um palíndromo, e quatro partes principais, com os nomes das quatro principais fases da lua. O número quatro é, portanto, o número que rege a organização deste livro. Cada uma dessas partes tem dezasseis poemas, um múltiplo de quatro. Na primeira parte, lua crescente, escrevo sobre as origens do Islão, num tom místico e simbólico. Na segunda parte, lua cheia, falo sobre a expansão árabe pela Península Ibérica; os poemas são inspirados em lendas, assumem formas populares e adoptam um tom festivo. Na terceira parte, lua minguante, retrato episódios históricos da queda e retirada dos árabes da península. Na quarta parte, lua nova, as pontes com o presente tornam-se mais evidentes do que nunca; a poesia é frequentemente embebida no sufismo. Em todas as quatro partes, os poemas são alinhados à direita da página, afastando-se da tradição ocidental e aproximando-se da experiência de leitura do árabe. O ponto de vista dos próprios poemas é maioritariamente, e tanto quanto possível, não-ocidental. Há também quatro outras partes, mais curtas, precedendo ou seguindo essas partes lunares, a que chamei "interstícios" — totalizando oito partes para o livro. Nesses interstícios, os poemas são alinhados à esquerda e adoptam um ponto de vista ocidental. A mancha gráfica também estabelece um diálogo entre um "eu" e o "outro". É uma poesia muito polissémica e esculpida, o que é característico do meu trabalho.
Natalie: Ao caminhar por cidades portuguesas como Lisboa, muitas coisas mudaram desde os tempos árabes. Como é que o Nero vê o legado árabe em Portugal? Portugal ainda guarda memórias dos árabes?
Nero: Sim, inevitavelmente. O estilo árabe ainda pode ser visto na nossa arquitetura e ecoa pelas chaminés algarvias. A agricultura da minha infância, no Algarve rural, preserva muitas das técnicas trazidas pelos árabes, em particular a nível da irrigação. Há noras nos campos. A paisagem algarvia é repleta de amendoeiras, alfarrobeiras e laranjeiras. Quase nenhum doce algarvio se faz sem amêndoas. Da salmoura à secagem ao sol, do léxico às lendas e ao folclore... o legado persiste. Estou a falar do Algarve, que é a realidade que melhor conheço. No entanto, o legado estende-se a todo o país.

Natalie: No artigo da revista, falou-se de Fernando Pessoa, que disse: “A alma árabe é o fundo da alma portuguesa”. O Nero escreveu: “há um árabe vivo dentro de mim, ainda”. Foi um desafio escrever um livro inteiro sobre o passado árabe em Portugal?
Nero: Claro, foi um desafio enorme. Importa ressaltar que o meu primeiro livro é um livro de alta fantasia. Quase tudo naquele mundo foi escrito do zero, com as mais variadas inspirações salvaguardadas. O meu segundo livro, Telúria, tem raízes autobiográficas e fala do campo e da cidade. Este Akbar é o primeiro que me exigiu um trabalho de pesquisa aprofundado, aliado aos meus anos de curiosidade sobre estes temas: historicamente falando, culturalmente falando, religiosamente falando. É um livro de poesia, profundamente estético, estilístico, pessoal... nunca pretendeu ser um tratado de história, terá alguma recriação. Mas, em geral, há um compromisso de fidelidade à documentação que chegou até nós e de respeito e consideração pelo que é factual. No entanto, houve alguns desafios extraordinários, a saber: honrar uma visão árabe dos acontecimentos — a história portuguesa ainda não é justa com a importância do domínio árabe — e refletir sobre a essência das religiões, das diferenças culturais, apontando possíveis caminhos para o respeito, para a coexistência e para a liberdade de expressão. A palavra como templo, comum a qualquer religião ou a qualquer um que ingresse pelo caminho da espiritualidade.
Natalie: Um dos meus reis árabes favoritos da história medieval é Muhammad Al-Mu'tamid ibn Abbad, um nobre rei, poeta renomado e amante apaixonado. Al-Mu'tamid nasceu em Silves, Portugal. Era de origem iemenita, da tribo Lakhmid, cujos descendentes eram os reis de um reino próspero no antigo Iraque. Al-Mu'tamid orgulhava-se dessa linhagem; ao mesmo tempo, nutria um profundo amor por Silves, relembrando as suas memórias de infância de lá. Como português, como é que o Nero vê Al-Mu'tamid? Consideraria visitar seu túmulo um dia?
Nero: Diz-se que Al-Mu’tamid nasceu em Beja, no Alentejo, a região acima do atual Algarve. Silves ergueu uma estátua dele numa praça. Os seus versos podem ser encontrados nas ruas da cidade, no museu e nos monumentos. Admiramo-lo como rei-poeta, cuja juventude foi vivida pela cidade, às margens do rio Arade. Este meu livro é-lhe dedicado, a ele e a Ibn ‘Ammâr, e os dois são os protagonistas de vários poemas deste livro. Talvez um dia visite o seu túmulo. O poeta vizinho que mencionei anteriormente, Neto dos Santos, já o fez antes. Não pretendo repetir essa viagem, pois não será necessariamente a minha. No entanto, se tiver oportunidade, fá-lo-ei, seguramente. Por agora, penso que a homenagem e o tributo a Al-Mu’tamid foram cumpridos.
Natalie: Al-Mu'tamid foi o suserano de grandes domínios de Al Andalus, bem como o último rei árabe de Sevilha (em árabe: Ishbiliyya). Governou durante um período turbulento na história andaluza e teve um fim trágico. Os Morávidas, governantes muçulmanos no Norte da África, traíram-no. Al-Mu'tamid recorreu a Afonso VI, o rei cristão de Leão e Castela, que estava pronto para enviar os seus exércitos para salvar o rei árabe dos berberes. No número 6 da revista, a sinopse do livro assumiu que o livro está: "desde cedo, comprometido em distinguir o que pertence à religião do que pertence à cultura, sem reduzir os árabes a praticantes do islamismo". A história de Al-Mu'tamid reflete a história de um rei muçulmano que foi traído pelos muçulmanos e respeitado pelos cristãos. O que é que o legado de Al-Mu'tamid pode ensinar-nos hoje?
Nero: Acredito que qualquer português de hoje pode encontrar em Al-Mu'tamid um reflexo de si mesmo e uma visão do outro, religiões à parte. A figura do rei-poeta, e a sua poesia em particular, oferecem essa possibilidade: entrar na psique de Al-Mu'tamid, compreendendo-o por dentro, de alguma forma. É quase impossível ignorar o seu culto à beleza e às artes, o seu apreço pelas memórias, o seu apreço pela amizade e pelo amor — tudo isso enquanto era capaz de liderar o seu povo e o seu território. Que líderes políticos hoje demonstram tamanho apreço pela cultura? São uma raridade; teriam muito a aprender com Al-Mu'tamid.
Natalie: A história partilhada por árabes e portugueses não termina com o fim do domínio árabe no Al Andalus. Os portugueses reencontraram os árabes depois de conquistarem vários territórios na região do Golfo Pérsico. Hoje, os sul-arábicos repetem histórias narradas pelos seus bisavós sobre Afonso de Albuquerque e Vasco da Gama. Visitei uma exposição há dois anos, que se concentrou no legado português durante essa fase. Muitos dos documentos e mapas eram exibidos pela primeira vez. Fiquei impressionada com o quanto os portugueses documentaram a vida, as cidades e o comércio árabes, o que é uma fonte valiosa para a compreensão da história sul-arábica. Isso foi de particular interesse para o governante de Sharjah, Sheikh Sultan Al Qassimi, que acreditava que precisamos voltar aos arquivos portugueses para compreender muitas fases da história árabe. Acha que o domínio árabe em Portugal influenciou o desejo português de reencontrar os árabes e de documentá-los? Qual é a sua perspetiva sobre estas duas fases?
Nero: Acredito sinceramente que grande parte da arte da navegação que os portugueses desenvolveram na chamada fase dos "descobrimentos" teve origem na sabedoria árabe (o que é, aliás, factual: o astrolábio, por exemplo, foi aperfeiçoado e reintroduzido na Europa pelos árabes) e num modo de ser muito "árabe": mais cosmopolita, mais aberto ao mundo, mais empreendedor e focado no intercâmbio e no comércio. A natureza expansionista dos portugueses, nessa época, em particular, reflete o eco da expansão árabe. Fomos aprendizes dos árabes. Não sei se a herança árabe influenciou o desejo português do reencontro (os árabes seriam, por essa altura e em parte, seus antepassados). Se a influência não foi direta e óbvia, terá sido indireta.
Natalie: Para os árabes de hoje, ainda há memórias persistentes de Portugal. O cantor libanês Fairuz tem uma canção chamada "Bint al Shalabiya". A palavra "Shalabiya", em árabe, significa "bela donzela". A origem desta palavra vem de Silves, em árabe "Shilb". Os árabes apelidaram as belas damas de "Shalabiya" porque Silves era conhecida pela beleza do seu povo. Os portugueses conhecem a sua herança árabe?
Nero: Pensei que me ia perguntar se as mulheres de Silves ainda são bonitas. Brincadeiras à parte: vivemos numa época de maniqueísmos, de preconceitos e de crescente ignorância, apesar da biblioteca aberta que é a internet, apesar das gerações que frequentam o Ensino Superior. Penso que os portugueses, como muitos povos hoje em dia, não têm um conhecimento especial nem uma consciência crítica especial sobre a sua história e sobre os seus possíveis legados. Hoje, de facto, ter apreço pela história parece ser facilmente confundido com — ou reduzido a — um apreço pelo nacionalismo, por parte de algum do discurso radical que circula no ocidente, como se ao valorizarmos o passado estivéssemos apenas a vangloriar-nos dos erros do passado; dos valores coloniais ou dominantes do passado, por exemplo. Os portugueses não estão suficientemente familiarizados com o legado árabe. A história que se ensina nas escolas poderia ser mais justa. A academia tem feito o seu trabalho para esse reconhecimento, mas o esquecimento ou a indiferença parecem ser os valores dominantes hoje.

Natalie: Pensa que este seu livro oferece uma nova perspetiva sobre este legado?
Nero: Fá-lo-á, certamente, quando muito não seja por ser a minha visão. Não aspiro a partilhar uma perspetiva necessariamente inovadora, embora este Akbar – Lunário Poético duma Alma ainda Árabe seja um livro ambicioso, reconheço. Akbar desempenhará o seu papel de convocar memórias e fomentar reflexões, às quais se junta a criatividade da minha poesia. Neste sentido, o livro é mais uma pedra na construção do devido reconhecimento, uma voz que invoca um coro que, ao longo dos séculos, tem assegurado que a memória sobrevivente dos árabes na Península Ibérica não se desintegre nem desapareça. Compreender o passado será sempre a melhor forma de preparar um futuro do qual façamos parte. Aprender é o caminho — e, para aprender, precisamos de ouvir, dialogar e recordar. E, por vezes, simplesmente honrar o silêncio — até que a palavra se eleve do templo.
Natalie: Akbar — Lunário Poético duma Alma ainda Árabe é de grande interesse para o público árabe. Será que um dia poderemos ler o seu livro numa tradução para o árabe?
Nero: Ficaria muito feliz se o livro ou alguns dos seus poemas fossem traduzidos para o árabe. Seria certamente um desafio. Quem sabe se isso não acontecerá em breve?
Obrigada!
Consulte a entrevista, em inglês, no blogue da revista: https://bibliotecanatalie.com/home/f/akbar-poetic-lunarium-of-a-still-arab-soul-interview-with-nero
O livro encontra-se disponível nas livrarias físicas e on-line.





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