Prefácio de 'Akbar', por Nuno Campos Inácio
- Outro
- 22 de ago.
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Prefácio de AKBAR — LUNÁRIO POÉTICO DUMA ALMA AINDA ÁRABE (2025), de Nero
por Nuno Campos Inácio
Em todos os veios do filão ocre algarvio, circula a verve que nutre os poetas. O coração desse grande corpo inerte, mas repleto de vida, é a velha al-Shilb, a capital do Gharb al-Andalus, residindo a alma no Finisterra, o Promontorium Sacrum, sepulcro santificado e morada de deuses. Aí mesmo, o último recanto de terra de onde se avista o último suspiro do Sol velho de cada dia, cobrindo-se com o luto da noite, aguardando o renascimento de um novo dia, repleto de esperança.

Os seios são duas grandes saliências montanhosas, nascentes de águas medicinais que há milénios curam as chagas do corpo e da alma, desembocando em braços de rio, que são portas abertas para o mundo e para a recordação do passado dos aventureiros libertos que ofereceram mundos ao mundo.
Este é o território-berço da escrita que os Conii inventaram com tal mestria que ainda não conseguiu ser plenamente decifrada, mais de três mil anos volvidos sobre o seu aparecimento. Serão os genes destes letrados antigos, misturados com os dos iemenitas letrados que para aqui vieram exilados, que adubam a verve poética e alicerçam o corpo e o espírito dos grandes poetas.

De facto, praticamente todos os gigantes da poesia lusa possuem no ADN cromossomas desse Algarve primordial e são legítimos herdeiros literários da «Alma ainda Árabe» de Al-Mu’tamid, Ibn’Ammâr, Al-Shilba, Ibn Qasi, Ibn Habib ou Maryam al-Ânsari. Referimos-nos a Luís Vaz de Camões, Fernando Pessoa, João de Deus, João Pinto Delgado, Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque, José Craveirinha, António Aleixo, Alexandre O’Neill, Garcia Domingues, Antero de Quental, Nuno Júdice, Tolentino de Mendonça, António Ramos Rosa, Cândido Guerreiro, Sophia de Mello Breyner, Lídia Jorge, Herberto Helder, António Gedeão, Agostinho da Silva, Adalberto Alves, João Braz, Casimiro de Brito, Manuel Neto dos Santos e, olhando o firmamento do futuro que se desvela, Nero.
Indubitavelmente, nesta obra, o Roberto Filipe sobreleva-se ao alter-ego Nero, rasgando uma nova via de encontro consigo mesmo, através da conjugação de palavras em forma de poemas. Todo o introito pretendeu enquadrar a obra e o seu autor no cená- rio a que legitimamente pertencem.
Se antes Nero era o narrador do épico, o herdeiro das odes greco-romanas que alimentaram e conduziram os poetas latinos na elaboração de obras gigantescas, agora parte ao encontro das suas próprias raízes mouriscas, condensando ideias de uma forma harmoniosa, subtil, musicada, desvendando ao leitor a sua centelha mais oculta e sobrelevando-o numa viagem no tempo e no espaço ao mais íntimo do seu corpo, do seu pensamento, da sua composição genética, do seu refúgio e do seu mundo. Metamorfoseia-se num Algarve adormecido, esbelto, magnético e mélico, repousando entre a «Telúria» ocre da serra e o «Oceano – O Reino das Águas», focando o infinito celeste e oculto, desvendando-o com o seu olhar cor de um mar aparentemente calmo, mas tenebroso, onde apetece mergulhar.
Nero encarna a essência mourisca do Gharb al-Andalus como poucos. Sabendo-se que, no início do século XVI, um terço da população de Silves ainda era moura islâmica, será seguramente um descendente desse reduto cultural andaluz. Só isso poderá explicar esta viagem esotérica com laivos sufistas, encetada por alguém que não vive a religião ou se dedica ao estudo filosófico ou religioso do Al-Qur’an.
A obra começa com o ritual purificador das abluções; se quisermos ir diante de Deus, teremos de estar limpos. É bom que o leitor, mentalmente, se banhe numa das nascentes cálidas de Munt Saquir, ou nos borbulhantes olhos de água de Al-Buhera, antes de iniciar esta viagem ao encontro do Akbar. A busca do Divino não é uma via rápida, possui inúmeras veredas sombrias, que muitas vezes nos engolem, torvando-nos o espírito e levando-nos à negação e ao desespero.
Para conhecermos o Divino do velho Gharb, temos de ir a Shilb e inalar o cheiro da terra pisada por poetas e mahdis; temos de ir ao Xarajibe ouvir o alaúde, o qanun, o rebab, o derbak e o daff, seguindo com o olhar a dança esguia e ritmada das bailarinas; declamar versos à lua e libertar barcos de poesia nas águas do Arade. Para conhecermos o Divino e compreendermos Silves, temos de nos perder entre os amores de Al-Mu’tamid e Ibn’Ammâr. Encarnar os sentimentos e vivenciar os prazeres proibidos desse tempo distante, que ainda é presente.
Akbar – Lunário Poético duma Alma ainda Árabe permite-nos tudo isto e muito mais.
Sete séculos nos separam no contexto da obra, mas uma só noite é suficiente para nos unir à essência espiritual. Se outro momento não se mostrar mais oportuno, poderemos fazê-lo à chegada ao poema «Silêncio». Talvez este Akbar seja grandioso demais para ser discutido ou questionado, a metáfora deste ousado «Silêncio» talvez seja o mais sublime resumo de uma obra criada para revelar o seu “criador” e aproximar-nos do Criador, seja Ele o que for, ou o que queiramos que seja. Se noutro não quisermos crer, que seja o «VERBO» aqui tão bem conjugado, na essência e na forma melodiosa do grafismo.
Nero talvez não o saiba, mas nesta obra enverga a kandoora de mestre e inicia a caminhada de um mahdi.

Nero (2025). Akbar — Lunário Poético duma Alma ainda Árabe. Lisboa: Manufactura, pp. 9-11.





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